A 3 de Dezembro, a Igreja Universal, e dentro dela a Companhia de Jesus de um modo muito particular, celebra a Festa de São Francisco Xavier, um dos maiores missionários de todos os tempos, figura emblemática da dimensão missionária da Igreja e figura maior na história da cristianização do Oriente e, ao mesmo tempo, do encontro entre a Europa e a Ásia. Deste Santo, cuja vida decorreu entre 1506, ano em que nasceu no Castelo de Xavier, e o dia 3 de Dezembro de 1552, dia em que, já às portas da China, na ilha de Sanchoão, a sua alma de fogo incandescente no seu irrefragável Amor de Deus deixava para trás o seu corpo cansado e exausto de tantas viagens e trabalhos sem conta, projetando-o para o futuro de uma história, não raro dramática, que estava ainda (quase) toda para vir.
A grande urgência deste impressionante Missionário da Igreja, hoje copatrono Universal das Missões Católicas com Santa Teresinha do Menino Jesus, urgência que ele primeiro viveu ainda na Europa, depois da sua mais radical conversão graças ao encontro com Inácio de Loyola e à experiência dos Exercícios Espirituais, e depois haveria de viver de forma radical nas suas longas travessias da Ásia, ora por mar ora por terra. Percorrendo, sempre incansável, enormes distâncias, entre essas a que vai de Goa ao Japão, e por mais de uma vez, a sua missão pode ser resumida na ideia de mostrar a todos a Verdade e a Beleza impressas no Rosto de Cristo, demonstrando mais do que tudo a insondável riqueza da Misericórdia de Deus que o Filho nos revela e de todos os seres humanos quer fazer filhos e filhas de Deus, onde quer que se encontrem.
Quando já no Oriente, em hora particularmente difícil, Francisco de Xavier falava de «nós Portugueses», um testemunho do seu apreço por Portugal, mesmo quando criticava sem complacência os maus comportamentos de alguns dos Portugueses que no Oriente, em vez de servir, estorvavam o caminho que Cristo necessitava fazer. No dia 15 de Janeiro de 1544, encontrando-se na cidade de Cochim, na India, Francisco de Xavier enviou uma carta aos seus companheiros residentes em Roma, documento que a todos os títulos me parece fantástico, e onde, em ponto para mim essencial, o nosso grande Santo se exprime assim:
«Muitos cristãos se deixam de fazer nestas partes, por não haver pessoas que em tão pias e santas coisas se ocupem. Muitas vezes me movem pensamentos de ir aos centros de estudos dessas partes – dando gritos, como alguém que tenha perdido o juízo – e principalmente à universidade de Paris, dizendo na Sorbona aos que têm mais letras que vontade, para dispor-se a frutificar com elas. Quantas almas deixam de ir para a glória e vão para o inferno, pela negligência deles! Se, assim como vão estudando em letras, estudassem na conta que Deus Nosso Senhor lhes pedirá delas e do talento que lhes deu, muitos deles se moveriam, tomando meios e Exercícios Espirituais para conhecer e sentir dentro, em suas almas, a vontade divina, conformando-se mais com ela que com as suas próprias afeições, dizendo: «Senhor, aqui estou. Que queres que eu faça? Envia-me aonde quiseres; e se convém, mesmo aos índios». Quanto mais consolados viveriam, e com mais esperança da misericórdia divina à hora da morte, quando entrassem no Juízo particular a que ninguém pode escapar, alegando a seu favor: «Senhor, entregaste-me cinco talentos, eis aqui outros cinco que eu ganhei com eles!» Receio de que muitos dos que estudam nas universidades, estudem mais para, com as letras, alcançarem dignidades, benefícios, bispados, que com desejo de conformar-se com a necessidade que as dignidades e estados eclesiásticos requerem. É costume dizerem os que estudam: Desejo saber letras para alcançar algum benefício ou dignidade eclesiástica com elas e, depois, com a tal dignidade, servir a Deus. De maneira que, segundo as suas desordenadas afeições, fazem as suas eleições, temendo que Deus não queira o que eles querem, não consentindo as suas desordenadas afeições deixar na vontade de Deus Nosso Senhor esta eleição. Estive quase movido a escrever à universidade de Paris, ao menos ao nosso Mestre de Cornibus e ao Doutor Picardo, quantos mil milhares de gentios se fariam cristãos se houvesse operários, para que (lá) fossem solícitos em buscar e favorecer as pessoas que não buscam os seus próprios interesses mas os de Jesus Cristo. É tão grande a multidão dos que se convertem à fé de Cristo, nesta terra onde ando, que, muitas vezes, me acontece sentir cansados os braços de batizar; e não poder falar, de tantas vezes dizer o Credo e os Mandamentos, na sua língua, deles, e as outras orações, com uma exortação que sei na sua língua, na qual lhes declaro o que quer dizer cristão, e que coisa é paraíso, e que coisa inferno, dizendo-lhes quais são os que vão a um e quais a outro. Mais que todas as outras orações, digo-lhes muitas vezes o Credo e os Mandamentos. Há dia em que baptizo toda uma povoação e, nesta Costa onde ando, há trinta povoações de cristãos.»
Da leitura de um texto como este, uma pergunta, pelo menos, nos deveria ficar, a todos nós que sabemos como é grande, e glorioso, o Nome de Jesus Cristo, e isso tanto mais assim quanto esta em que nos encontramos é a primeira semana do Advento: que fiz, faço ou farei para que outros, a começar pelos que me estão mais próximos, possam também conhecer a Jesus Cristo e com isso reconhecerem a Beleza do Evangelho da Vida Nova, conhecendo-O melhor para mais O amar e melhor O servir, e com isso n’Ele reconhecermos todos o Futuro do mundo e da história, confessando a Beleza do Seu Rosto e a insuperável Alegria do Seu Evangelho?
Na Igreja, a dimensão missionária não é opcional, mas antes parte da condição de todos os batizados, ou seja, de todos quantos, pelo Batismo, fomos incorporados no Corpo de Cristo e, por isso, somos o modo que Cristo hoje tem para chegar sempre mais longe por entre os espaços da história humana, sempre mais fundo por entre os interstícios da História, sempre mais adiante no aperfeiçoamento da condição humana presente em todos os povos e nações, nas mais diversas culturas e civilizações, nas pessoas, cada uma por si, e nas sociedades entendidas como totalidades abertas e em progresso contínuo em direção a esse Futuro que nos espera e fez de São Francisco Xavier, depois de São Paulo, um dos maiores Missionários da Palavra e da Vida de Deus no mundo, alguém que de Navarra a Paris, de Paris a Roma e a Lisboa, e uma vez embarcado nos cais do rio Tejo atravessou os oceanos para chegar a Goa e Cochim e depois calcorrear uma enorme porção do subcontinente indiano, mas sempre com o objetivo de chegar um pouco mais longe, de se abeirar dos confins, aqueles mesmos que ele encontrou em Ceilão e em Malaca, na Indonésia (se não mesmo Timor) e a Cochinchina, o Japão e a China, este Império do Meio a cujas portas, extenuado, o Missionário deixou este mundo para entrar na Glória d’Aquele a quem desde a sua conversão em Paris nunca mais deixou de com toda a determinação «em tudo amar e servir».
Por Pe.João J. Vila-Chã SJ, sacerdote jesuíta português.