Na sua mensagem ao Dia Mundial das Comunicações Sociais deste ano, Francisco faz um gesto copernicano. Ele tira do centro do processo comunicacional os “meios”, entendidos, muitas vezes, meramente no seu tecnicismo maquínico. Em seu lugar, coloca os “corpos” que se tocam, a “linguagem corporal”, que tem sua origem no amor entre mãe e bebê, ainda no ventre materno.
A opinião é de Moisés Sbardelotto, jornalista, doutorando em Ciências da Comunicação pelaUnisinos e autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet(Ed. Santuário, 2012).
Eis o texto.
Com a mensagem para o 49º Dia Mundial das Comunicações Sociais, intitulada Comunicar a família: ambiente privilegiado do encontro na gratuidade do amor e divulgada nessa sexta-feira, 23 de janeiro, o Papa Francisco relê a comunicação contemporânea a partir da família. Esta é o “primeiro lugar onde aprendemos a comunicar”. É escola,ambiente e sujeito da comunicação.
Se, na mensagem do ano passado, Francisco destacava a proximidade como o “poder da comunicação”, neste ano, o papa ressalta o processo de “descoberta e construção” dessa proximidade, a partir do relato evangélico da visita deMaria a Isabel (Lc 1, 39-56). “Exultar pela alegria do encontro é, em certo sentido, o arquétipo e o símbolo de qualquer outra comunicação”, afirma. Assim, Francisco vê na família um “momento original” da comunicação.
Para o papa, a “primeira escola de comunicação” é o próprio ventre materno. Por isso, a relação entre a mãe e o bebê é a nossa primeira experiência comunicativa. O método pedagógico dessa escola é a “escuta e o contato corporal”, um “diálogo que se entrelaça com a linguagem do corpo”. A comunicação – mais do que um fazer, mais do que um ter, mais do que um poder – é “ser”: nascemos em comunicação, evoluímos porque nos comunicamos, comunicamo-nos para viver. É uma dimensão existencial, vital ao próprio ser humano em relação – muito mais do que um modelo sociológico abstrato.
Do ponto de vista dos estudos de comunicação, Francisco vai além e faz um gesto copernicano. Ele tira do centro do processo comunicacional os “meios”, entendidos, principalmente no pensamento eclesial, muitas vezes, meramente no seu tecnicismo maquínico. Em seu lugar, coloca os “corpos” que se tocam, a “linguagem corporal”, que tem sua origem no amor entre mãe e bebê, ainda no ventre materno.
Logo vem à mente a semelhança com a crítica ao “midiacentrismo” presente na pesquisa comunicacional, mediante a qual Jesús Martín-Barbero convidava (e ainda convida) os estudiosos latino-americanos da comunicação a fazerem um movimento “dos meios às mediações” comunicacionais da cultura, tomando distância de perspectivas nórdicas de matriz mcluhaniana, pouco fecundas para as especificidades do Sul do mundo. Francisco, por sua vez, radicaliza a perspectiva antropoculturalista, indo às raízes do processo comunicativo e dando um salto “dos meios aos corpos”, ao toque, ao contato, à “cola” das relações humanas e sociais.
A comunicação, na leitura de Francisco, portanto, não é um processo tecnológico “midiacêntrico”. O papa dedica apenas um parágrafo à questão dos “meios mais modernos”. Também não é uma “técnica” fria, que pode ser aprendida autonomamente. A comunicação tem um “início vivo”, o encontro interpessoal. E é a partir dele que também a questão tecnológica deve ser orientada: as tecnologias obstaculizam quando “isolam da copresença física”, mas ajudam quando “tornam sempre de novo possível o encontro”.
Sugerindo a imagem da relação mãe e bebê, Francisco também ressalta que a comunicação é um processo que se aprende. Ninguém nasce comunicador, e a comunicação não é um “dom de nascença”, reservado aos escolhidos. Se assim fosse, nesta nossa “sociedade da comunicação generalizada”, isso acabaria privilegiando alguns e excluindo outros: os que teriam o dom não precisariam fazer mais nada, e os que não o teriam nada poderiam fazer a respeito. Ao contrário, para comunicar, sugere o papa, é necessário um caminho pedagógico, um aprendizado que começa em família, ainda no ventre da mãe – não por acaso, o verbo “aprender” é quase um refrão de toda a mensagem.
Com o crescimento do ser humano, crescem também as dimensões dessa escola comunicacional. Do ventre materno, passamos para o ventre familiar. Um ambiente complexo, que, em primeiro lugar, demanda uma evolução em termos de linguagem: dos corpos para os símbolos. Aprendemos a externalizar o que somos mediante a nossa “língua materna”, ou seja, “a língua dos nossos antepassados”. A família é esse ambiente simbólico do qual recebemos palavras já prontas, à espera de serem reinventadas. “Podemos dar porque recebemos”, diz o papa, e esse “circuito virtuoso” – recíproco, inter-referencial – é o “paradigma de toda comunicação”.
Ao sermos inseridos em uma família, nosso leque de relações se amplia em “gênero e geração”, escreve Francisco. Passamos a habitar um “ambiente de vida mais rico”, “um ventre feito de pessoas diferentes, em relação”, um “espaço onde se aprende a conviver na diferença”, lugar em que se experimentam “os limites próprios e alheios”. E, para favorecer essa convivência, o papa apresenta algumas “dinâmicas de comunicação”, como a oração, o perdão e a bênção.
Mas a família não se encerra em si mesma. Além de escola e de ambiente, a família também é um “sujeito que comunica, uma ‘comunidade comunicadora'”, afirma Francisco. No âmbito eclesial, contudo, a família é vista, muitas vezes, apenas como um “objeto” da evangelização, devendo ser guiada pelo episcopado e pelo clero. Contudo, especialmente no Brasil, inúmeras famílias e comunidades eclesiais sobrevivem ao longo dos anos sem uma presença clerical ou religiosa consagrada. Na base, a família é, sim, o principal sujeito da evangelização. A presença cristã nas estradas da história tem a sua força graças aos milhares de casais de leigos e leigas, e às famílias que impulsionam a Igreja a ser realmente “em saída”, a ser realmente uma “família de famílias”, como define Francisco.
Por outro lado, no âmbito social, falar em família já traz consigo inúmeros clichês e estereótipos, que encerram esse conceito nos padrões das “propagandas de margarina”. Mas o texto de Francisco nasce de um contexto: a “profunda reflexão eclesial” e o “processo sinodal” que a Igreja está vivendo. Por isso, a mensagem também pode ser um indicador da imagem de família cristã que o papa deseja ver encarnada no mundo do século XXI.
Fica claro que, para Francisco, a família não é um “modelo abstrato”. Também não é “um problema ou uma instituição em crise”. O papa a vê como uma “realidade concreta”. Há “beleza e riqueza” no relacionamento “entre o homem e a mulher, entre pais e filhos”. A crítica poderia ser: mas e as famílias monoparentais? E os divorciados e seus filhos? E as famílias divididas? E os casais homoafetivos? Escutamos, como comunidade cristã, o que essas realidades estão nos comunicando?
Para o papa, a família não é “um terreno onde se combatem batalhas ideológicas”, “uma ideologia de alguém contra outro”, um estereótipo cultural único e exclusivo. “Não existe a família perfeita – esclarece Francisco –, mas não é preciso ter medo da imperfeição, da fragilidade, nem mesmo dos conflitos; é preciso aprender a enfrentá-los de forma construtiva”.
O desafio da família – e da Igreja, como família de famílias –, segundo Francisco, é “comunicar de modo inclusivo”, mesmo diante dos limites. É tornar nossas comunidades “mais acolhedoras para com todos, a não excluir ninguém”. Do “novo ponto de vista” apresentado pelo papa, a família é o “lugar onde todos aprendemos o que significa comunicar no amor recebido e dado”.
Diante de um contexto social marcado pelo individualismo, ser família já é uma grande comunicação: uma boa nova de que outra sociedade é possível, construída por laços de amor e de gratuidade entre esposos, entre pais e filhos, entre irmãos e irmãs.
Por Moisés Sbardelotto
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos