MORTIFICAÇÃO E PENITÊNCIA

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Em primeiro lugar para se falar de mortificação em sentido cristão é preciso recordar a exortação que o Senhor nos faz no Evangelho: “Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai é perfeito” (Mt 5, 48). Já que o objetivo primeiro da mortificação e da penitência não é nos impor um sofrimento ou uma privação inútil, mas nos conduzir sempre mais à perfeição que o Senhor nos pede, conduzir-nos cada vez a uma união mais íntima com Ele, a uma vida mais santa, mais conformada com a Sua vontade.

Sem experiência de mortificação e penitência não é possível percorrer o caminho de perfeição, como conclui o Catecismo da Igreja Católica: “O caminho da perfeição passa pela cruz” (CCE, 2015). Assim como a purificação do ouro passa pelo fogo, a busca de uma vida santa passa pela mortificação e pela penitência. De modo que, mortificar-se não significa passar a vida correndo atrás de sofrimentos, mas em assumir com serenidade os sofrimentos que a vida por si mesma nos impõe devido a nossa fidelidade ao amor de Deus.

A mortificação mais genuína passa por suportar os sofrimentos, os limites e as privações pelo amor de Deus: “Tu porém, sê sóbrio em tudo, suporta o sofrimento, faze o trabalho de um evangelista, realiza plenamente o teu ministério” (II Tm 4, 5). É campo privilegiado para o exercício da mortificação e da penitência a convivência com os outros, na qual temos que suportar os nosso defeitos e também o dos outros com paciência. Tanto que São Bernardo dizia que: “A vida comunitária é a máxima penitência”.

A mortificação vivida segundo esta lógica de suportar o sofrimento, sem murmurações, sem revolta, torna-se expressão de uma vida eucarística que se manifesta na entrega de si mesmo no cotidiano da vida ao desejo de amar a qualquer custo, até à dimensão do sacrifício. Como afirmou o Senhor na última ceia: “Isto é o meu corpo entregue por vós. Isto é o meu sangue derramado por vós”.

A sua livre entrega à imolação é sua mortificação, o conduz à morte na sua carne. Em outras palavras, mortificar-se significa morrer para as obras mortas da carne, e renascer para a vida nova do Espírito (cf. Rm 8), do amor incondicional, o Amor que morre para dar a vida.

Os frutos da mortificação, segundo CCE, é o progresso espiritual que resulta numa vida de paz e alegria (cf. CCE, 2015) e, em última instância, a salvação. Pois quanto mais mortificada a avidez dos nossos sentidos, menos nos atrai as tentações ilusórias e passageiras deste mundo, que nos causam tanta perturbação. Ao tempo que, quanto mais desprendidos deste mundo pela mortificação, mais intensamente desejamos os tesouros da vida eterna. Quanto mais livres das criaturas, mas livremente tendemos ao Criador.

Tanto que podemos afirmar que a angústia consumista do homem contemporâneo é o resultado da falta de mortificação dos sentidos e da perda dos horizontes eternos. Porque quando não nos mortificamos nos tornamos escravos dos bens deste mundo, que nunca serão capazes de nos satisfazer e de nos fazer completamente felizes. Nos tornamos escravos dos sentidos.

Para nos mortificarmos com fruto é preciso vigilância quanto ao que vemos (visão), escutamos (audição), sentimos (tato), degustamos (paladar), cheiramos (olfato). Para mortificar os sentidos é fundamental habituar-se a uma vida de pequenas penitências, jejum, esmola e oração (cf. CCE, 1434). Daí a importância da abstinência de carne nas sextas-feiras e da prática das obras de misericórdia espirituais e corporais. Se deixamos de mortificar nossos sentidos as consequências são desastrosas.

Assim, como a mortificação produz os seus frutos, a ausência dela tem suas consequências, e são graves. A pessoa que não se exercita pela mortificação fica a mercê da murmuração diante das contrariedades, do derrotismo e depressão diante do fracasso, da revolta diante do sofrimento, sujeito aos vícios. Somente uma vida mortificada pode nos libertar desses males.

Mortificação e penitência andam juntas e nos ajuda a progredir em santidade. Não é por acaso o que nos diz o CCE, 2043: “O quarto mandamento (‘Jejuar e abster-se de carne, conforme manda a Santa Mãe Igreja’) determina os tempos de ascese e penitência, que nos preparam para as festas litúrgicas e contribuem para nos fazer adquirir o domínio sobre nossos instintos e a liberdade de coração”. Um coração mortificado e penitente é um coração verdadeiramente livre.

Ademais o CCE nos nns. 1434-35 nos indica além da oração, do jejum e da esmola como formas privilegiadas de penitência, algumas outras que tanto podem nos ajudar a progredir espiritualmente:

  • O esforço para reconciliar com o próximo;
  • As lágrimas por nossos pecados;
  • A preocupação com a salvação do próximo;
  • a prática da caridade, ‘que cobre uma multidão de pecados’ (IPd 4, 8);
  • Gestos de reconciliação;
  • O cuidado com os pobres;
  • O exercício e a defesa da justiça e dos direitos;
  • O reconhecimento das próprias faltas diante dos irmãos;
  • A correção fraterna;
  • A revisão de vida;
  • O exame de consciência;
  • A direção espiritual;
  • A aceitação dos sofrimentos;
  • A firmeza na perseguição por causa da justiça;
  • Tomar a cruz, cada dia, seguir a Jesus é o Caminho mais seguro da penitência.

Por fim, o homem mortificado, penitente, começa a viver guiado pelas coisas eternas, para ele os bens deste mundo tendem caducar-se, à medida que cresce o desejo do céu. Portanto, quanto mais nos mortificamos, mais nos tornamos livres e donos de nós mesmos, e podemos nos doar cada vez mais por inteiro a Deus e aos outros. Isto é a perfeição, como afirma Santo Tomás de Aquino: “a perfeição consiste essencialmente no amor de Deus e do próximo amado por Deus” (Tanquerey, 197). O ser perfeito é aquele atinge o seu fim, ora o fim do homem é Deus, e se a mortificação visa a perfeição, o seu intuito é formar-nos para “viver para Deus em união com Jesus Cristo” (Pe. J. J. Olier pss). Começamos a viver para Deus, quando começamos a morrer para as realidades caducas deste mundo, para nossas vontades rebeldes, ou seja, quando começamos a nos mortificar.

 

Pe. Hélio Cordeiro dos Santos
Formador do seminário maior N. S. de Fátima
Brasília – DF